sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Passe livre

É tudo verdade: Embalado por uma bela trilha, "Passe Livre" segue uma estrutura que se alterna entre o resumo da trajetória do meio-campista e a crítica à mercantilização do futebol.
Uma estátua para Afonsinho

Por Amir Labaki, de São Paulo
27/08/2010


Agência O Globo

Afonsinho sem a barba nem o cabelo comprido vetados pelo Botafogo: justiça feita

Um dos clássicos menos conhecidos do documentário sobre futebol no Brasil, "Passe Livre" (1974), de Oswaldo Caldeira, finalmente está disponível em DVD (Original Video, R$ 29,90). Muita água rolou desde seu lançamento original por um circuito alternativo, paralelo ao grande mercado das salas de cinema da época, a começar da saudável revogação da "Lei do Passe", o instrumento que concedia aos clubes o direito absoluto de controlar os destinos de um jogador. O filme de Caldeira é um libelo contra aquela situação, a partir do estudo de caso de um pioneiro rebelde que conseguiu na Justiça sua liberdade profissional como atleta, o meio-campista Afonsinho.

Afonsinho era um craque diferenciado, dentro e fora do campo. Inteligente e articulado, estudante de medicina, revoltou-se contra a tirania do Botafogo, clube que o revelou, que quis obrigá-lo a raspar a barba e cortar o cabelo. Detentor do próprio passe, jogou nos anos 70 no Santos de Pelé, Carlos Alberto, Edu e Clodoaldo e no Flamengo de Zico, encerrando a carreira em 1982 no Fluminense.

Desde a aposentadoria nos campos, longe dos holofotes, o doutor Afonso Celso Garcia Reis dedica-se à medicina e a projetos sociais no Rio. Para as novas gerações, ele é muito menos lembrado como o armador elegante de perfil guevariano do que pela referência pop na abertura de uma deliciosa canção de Gilberto Gil, "Meio de Campo", que o homenageia como o "prezado amigo Afonsinho" já na estrofe inicial.

Embalado por uma bela trilha que além de Gil conta com Gal Costa e os Novos Baianos, montado com bossa pelo cinema-novista Gustavo Dahl, "Passe Livre" segue uma estrutura que se alterna entre o resumo da trajetória de Afonsinho e a crítica à mercantilização do futebol. O craque barbudo é inserido numa linhagem de injustiçados dos estádios brasileiros, no qual se destacam breves retratos do goleiro Barbosa (1921-2000), estigmatizado até o fim da vida pelos gols que sofreu na derrota brasileira na final da Copa de 1950, e do aguerrido artilheiro Almir (1937-1973), que de "Pelé branco" do fim dos anos 50 se tornou o "Rei da Catimba" na década seguinte, encerrando a carreira de forma melancólica.

O exemplo de Afonsinho é contraposto no filme a um conflito similar, mas de resolução muito distinta, que envolveu na época o mesmo Botafogo e Jairzinho, o "Furacão" da Copa de 1970. Impedido pelo clube de ir ao Japão para cumprir um contrato publicitário, Jairzinho recorreu na Justiça, foi derrotado, desculpou-se e retomou a carreira como se nada tivesse acontecido.

Comentando o filme a partir da reação de operários de São Paulo na saída de projeções, Jean-Claude Bernardet sustentou que o esquema Afonsinho herói/Jairzinho anti-herói visado por Caldeira se invertia entre os trabalhadores. O primeiro teria sobre o segundo a vantagem da alternativa da medicina como fonte de sustento. "A reação desse público desmontou o filme", defendia Bernardet, frustrando-se, assim, qualquer tentativa de "metaforização do futebol" para uma reflexão sobre "a situação do operário numa sociedade capitalista".

Mais recentemente, o crítico Luiz Zanin Oricchio apresentou uma leitura mais generosa em seu obrigatório "Fome de Bola: Cinema e Futebol no Brasil" (Imprensa Oficial, 2006). Para Zanin, "Passe Livre" fala de Afonsinho mas "se refere também (...) a toda situação política do país, com as classes trabalhadoras amordaçadas pela ditadura". A metáfora para o critico de "O Estado de S. Paulo" é outra, e "poderosa": "A do jogador que, em plena vigência da ditadura militar, luta na Justiça pelo direito de usar cabelos compridos e barba - e ganha".

É nesse sentido que hoje como nunca o filme rima com a canção de Gil. "Fiz a música em sua homenagem para dizer dessa dimensão que eu via nele", contou Gil a Carlos Rennó em "Todas as Letras": "A do homem fiel, generoso; o que abdica do trono; o que não brilha como os reis, mas é um sábio de cajado na mão; o sábio que vem visitar o palácio a convite do soberano e trazer novidades, impressões; vem para dizer coisas importantes, interessantes; para trazer luz, sabedoria. Isso tudo associado à imagem do hippie (...) que jogou para cima as convenções".

Com sua arte nos campos, Jairzinho muito fez por merecer a estátua dele em tamanho natural que o Botafogo inaugurou no fim de semana passado na entrada de seu estádio, o Engenhão. Até por justiça poética, o monumento a Afonsinho é outro, não menos concreto por ser etéreo, presente na liberdade de cada jogador de escolher hoje o próprio destino, em cada cantarolar da música de Gil e na emoção de cada espectador de "Passe Livre". Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão.

Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.

E-mail: labaki@etudoverdade.com.br

Site do festival: www.etudoverdade.com.br

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